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Namoro qualificado ou união estável? Os limites da autonomia afetiva no Direito de Família

  • Foto do escritor: Braga & Garbelotti
    Braga & Garbelotti
  • 15 de jul.
  • 3 min de leitura

Samuel Souza Rodrigues

 

O avanço do Direito das Famílias brasileiro transformou radicalmente a forma como se reconhecem os vínculos afetivos. Se antes apenas o casamento desfrutava de tutela jurídica como entidade familiar, hoje a união estável tem esse mesmo peso, bastando a convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família. No entanto, a informalidade que torna a união estável um instituto moderno e acessível também é a causa de grande insegurança jurídica, principalmente quando confrontada com a figura do namoro qualificado - uma relação amorosa intensa - mas ainda sem a intenção atual de formar família.


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Essa zona cinzenta entre namoro e união estável desafia o judiciário, que se vê diante de vínculos afetivos que, embora marcados por coabitação, publicidade e até prole comum, não tem, segundo as partes, o elemento subjetivo essencial: a affectio maritalis. Este termo, cunhado pela doutrina e consolidado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, refere-se ao verdadeiro desejo de constituir um núcleo familiar. Trata-se do traço que diferencia um relacionamento com projetos de vida comuns de um envolvimento afetivo ainda em fase preparatória. Nesse contexto, o namoro qualificado desponta como figura intermediária mais sério e estável que um namoro comum, mas ainda destituído da constituição familiar presente.


Diante desse cenário, muitos casais têm buscado formalizar sua intenção de permanecer apenas no campo do namoro, por meio do chamado Contrato de Namoro. Instrumento contratual atípico, elaborado sob as regras gerais do artigo 104 do Código Civil, ele declara expressamente a ausência de animus familiae, com o objetivo principal de proteger o patrimônio dos envolvidos e evitar a configuração de uma união estável. Embora válido, esse contrato não é infalível: sua eficácia dependerá da realidade dos fatos. Se, na prática, o casal vive como se casado fosse, com comunhão de vidas, assistência mútua e administração conjunta de bens, pouco valerá o papel que afirma o contrário.

 

A jurisprudência, atenta à complexidade das relações contemporâneas, tem reiterado que o reconhecimento da união estável exige mais do que convivência pública ou tempo de relacionamento. É necessário que a intenção de formar família esteja efetivamente presente e seja demonstrada no cotidiano da relação. Em decisões paradigmáticas, como o REsp 1.454.643/RJ, o STJ enfatizou que o desejo futuro de constituir uma entidade familiar não basta. A affectio maritalis deve ser atual, concreta e vivenciada durante todo o vínculo. A coabitação, por exemplo, por si só, não configura união estável, já que pode decorrer da simples conveniência financeira ou logística.

 

O ponto de maior tensão entre os institutos está, justamente, na ausência de formalismo da união estável. Ao contrário do casamento, que exige cerimônia e habilitação, a união estável nasce do fato, da realidade vivida, independentemente de contratos ou registros. Por isso, mesmo contra a vontade declarada das partes, pode ser reconhecida judicialmente. Isso tem gerado debates sobre a eficácia real dos contratos de namoro, especialmente em situações em que há contradição entre a forma e o conteúdo da convivência.

 

A distinção entre namoro e união estável, embora aparentemente simples, exige análise minuciosa das provas. O Judiciário deve perscrutar o querer constituir família em cada caso, considerando o conjunto fático e o comportamento dos envolvidos. Não se trata apenas de verificar a existência de filhos, residência comum ou tempo de relação, mas de compreender o significado subjetivo atribuído àquela convivência por ambos os parceiros.

 

Diante disso, a recomendação não é apenas a celebração do contrato de namoro, mas a coerência entre a vida praticada e a vontade declarada. A proteção patrimonial e a segurança jurídica não decorrem apenas de documentos, mas da solidez entre forma e conteúdo. Quando o relacionamento ultrapassa os limites do namoro, ainda que qualificado, e adota características próprias de uma entidade familiar, não haverá contrato que possa impedir a incidência das normas do Direito de Família.


Ao fim e ao cabo, a melhor prevenção é a informação clara e o aconselhamento jurídico adequado. O contrato de namoro é válido e útil, mas não é blindagem absoluta. A afetividade, ainda que permeada por liberdade e espontaneidade, produz efeitos jurídicos que o Direito não ignora. O desafio está em reconhecer os contornos daquilo que é, e não apenas daquilo que se declara ser.

 

 
 
 

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