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Herança digital: desafios jurídicos e sucessórios na era dos bens imateriais

  • Foto do escritor: Braga & Garbelotti
    Braga & Garbelotti
  • há 23 minutos
  • 4 min de leitura

Samuel Souza Rodrigues

 

A transformação digital impactou não apenas a forma como nos comunicamos e consumimos, mas também como acumulamos patrimônio e nos relacionamos com bens imateriais. Diante disso, ganha relevância a chamada herança digital — um tema ainda pouco regulamentado, mas cada vez mais presente nas discussões jurídicas contemporâneas.


Herança digital é a expressão utilizada para designar o conjunto de bens, direitos e informações de uma pessoa que estão armazenados em meio digital e que podem ou não ser transmitidos aos herdeiros após sua morte. Entre esses elementos, estão criptoativos (como bitcoins e NFTs), contas em redes sociais, arquivos em nuvem, carteiras digitais, assinaturas eletrônicas, saldos em plataformas online, milhas aéreas, pontos acumulados em cartões de crédito e até direitos autorais sobre conteúdos digitais. Nesse sentido, os bens digitais são considerados bens imateriais e são protegidos pelas leis de propriedade intelectual. Podem ser objeto de contratos de licença, de cessão de direitos autorais ou de transferência de titularidade, como qualquer outro bem protegido pela lei.

 

Embora o tema esteja em ascensão, a legislação brasileira ainda é silenciosa quanto ao tratamento específico dessa categoria de bens, mesmo que já existam propostas legislativas para normatizar a herança digital (PL 4.099/12, PL 7.742/17, PL 8.562/17 e PL 1.689/21). Dentre os projetos citados, o PL 1.689/21 é o único que se encontra em análise na Câmara dos Deputados, sob fortes críticas de inconstitucionalidades.

 

A Lei nº 10.406/2002 (Código Civil), lei maior que regula a sucessão, não distingue entre bens físicos e digitais, o que gera várias interpretações e insegurança jurídica. Atualmente, é por meio da analogia e da aplicação de princípios constitucionais e civis — como a dignidade da pessoa humana, a autonomia da vontade e o direito à privacidade — que os casos têm sido tratados, e é sobretudo a jurisprudência que tem fornecido parâmetros de esclarecimento das dúvidas acerca do tema.

 

Algumas distinções são importantes nesse debate, já que nem todos os bens digitais são de natureza patrimonial, ou seja, além daqueles que possuem valor econômico, e, portanto, são transmissíveis, existem os de caráter meramente existencial ou personalíssimo, tais como mensagens pessoais ou perfis sociais cujo conteúdo é essencialmente íntimo.

 

Esse dilema é um dos pontos abordados no Projeto de Lei nº 4/2025 que, além de pretender a reforma de uma série de artigos do nosso Código Civil em vigor, também busca disciplinar o tema ao reconhecer a transmissibilidade dos bens digitais com valor econômico, preservando, ao mesmo tempo, a intimidade do falecido. A proposta sugere, inclusive, que o próprio titular possa determinar, em vida, o destino de seus bens digitais, seja por meio de testamento ou codicilos (disposições de última vontade menos abrangentes que o testamento, como doações de pequeno valor ou instruções sobre o enterro), seja por diretrizes registradas em plataformas tecnológicas. Inobstante, o texto ainda enfrenta críticas, principalmente no que tange à proteção da privacidade post mortem e à eficácia das disposições em face das políticas internas das empresas digitais.

 

A jurisprudência brasileira tem se deparado com casos cada vez mais frequentes envolvendo herdeiros que desejam acessar contas de e-mail, redes sociais ou carteiras digitais do falecido. Em alguns casos, a Justiça autorizou o acesso com base no interesse legítimo dos herdeiros ou no caráter patrimonial do conteúdo. No entanto, ainda não há entendimento consolidado nos tribunais superiores, o que reforça a urgência da regulamentação legislativa.

 

Um ponto especialmente sensível é o dos criptoativos. Pela lógica de tecnologias como o blockchain, a posse e o controle desses ativos estão atrelados exclusivamente às chaves privadas. Neste caso, se o titular morre sem deixar essas credenciais registradas, os ativos se tornam inacessíveis, causando prejuízos aos herdeiros, como aconteceu no caso famoso ocorrido em 2018 com a QuadrigaCX, empresa de cripto canadense que, com a morte do seu CEO Gerald Cotten, não teve como pagar seus clientes porque as senhas de acesso aos valores de mais de US$ 250 milhões em Bitcoin  e outras criptos pertencentes a milhares de clientes só eram de conhecimento do CEO então declarado morto. Por isso, o planejamento sucessório envolvendo criptomoedas exige cuidados redobrados, inclusive com a eventual inclusão dessas informações em testamento sigiloso ou por meio de soluções tecnológicas seguras, além de acesso compartilhado por pessoas de confiança.

 

No tocante à herança digital das redes sociais, temos que grandes corporações, como Google e Facebook, já oferecem ferramentas que permitem ao usuário definir previamente o destino de suas contas e dados. No caso do Google, existe o Inactive Account Manager ou Gerenciador de Contas Inativas (em tradução livre), que notifica contatos confiáveis após certo tempo de inatividade. Já o Facebook permite a nomeação de um "contato herdeiro", a transformação da conta em memorial ou sua exclusão, enquanto que o X (antigo Twitter) não permite disposição antecipada, mas aceita pedidos da família para remoção da conta. Com isto, inexistindo manifestação expressa do falecido, apenas os bens digitais com valor econômico devem ser transmitidos aos herdeiros. Dados sem valor patrimonial e que possam comprometer a imagem do falecido devem ser destruídos, respeitando sua dignidade póstuma. O Judiciário, enquanto não houver lei específica, deve decidir caso a caso.

 

Embora o acesso aos dados e bens digitais dos falecidos envolva questões patrimoniais, também levanta debates éticos e afetivos. Como equilibrar o direito dos herdeiros com a vontade presumida do falecido? Como garantir que a memória digital de uma pessoa seja preservada de forma respeitosa? Como adaptar os institutos clássicos do direito das sucessões à complexidade da vida digital sem comprometer direitos fundamentais nem gerar lacunas que prejudiquem os herdeiros? São questões que desafiam o direito e a sociedade e espera-se sejam respondidas em breve pela legislação brasileira.

 

Por ora, vale a conscientização de incluir o tema da herança digital no planejamento sucessório, registrar em testamento o que se espera que aconteça com os bens digitais após a morte, deixar instruções claras para familiares ou advogados e utilizar os próprios recursos das plataformas tecnológicas para indicar sucessores ou definir diretrizes. Estas são algumas das medidas prudentes.

 
 
 
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